Caçadores vem se valendo da Instrução Normativa nº 03/2013, permissiva da chamada caça de controle do javali, para executar quaisquer espéicies de animais, incluindo as silvestres, ameaçadas de extinção. Editada pelo Ibama, a Instrução Normativa nº 03/2013 liberou a caça do javali, inclusive no Estado de São Paulo, como suposta forma de controle populacional dessa espécie.
Se alguma espécie é tida por nociva pelo órgão competente, por ameaça a plantações, aos rebanhos ou pomares, medidas razoáveis e aceitáveis de controle populacional deveriam ser adotadas, em substituição à denominada caça de controle, prática que além de ser vedada pela Constituição do Estado, ainda incide na norma punitiva do art.32 da Lei Federal nº 9.605/98.
Desde a edição da referida normativa, era previsível o fato de que não haveria como restringir o abate apenas ao javali. O chamado “manejo do javali”, na prática, tornou-se um salvo-conduto para a impune execução de animais de quaisquer espécies, o que caracteriza atividade de caça, que nada tem a ver com o anunciado controle populacional. Tendo em vista que a Instrução Normativa nº 03/2013 autorizou uma atividade não passível de fiscalização, é forçoso concluir que referida normativa, na prática, liberou a caça, disfarçada de controle populacional, atividade que vem vitimando espécimes silvestres nativos. A simples impossibilidade de exercer uma razoável fiscalização sobre o “manejo do javali”, capaz de assegurar que o abate estaria, de fato, restrito àquela espécie, já deveria, por si só, inviabilizar a edição de tal normativa.
Em 28 de junho de 2018, foi sancionada a Lei Estadual Paulista nº 16.784/2018 que, secundada pelo artigo 204 da Constituição do Estado de São Paulo, veda a caça, sem, entretanto, impedir o controle populacional, proibindo apenas que tal controle, manejo ou erradicação de espécie declarada nociva ou invasora, seja realizado por pessoas físicas ou jurídicas não governamentais. A norma estadual permite, portanto, que o controle populacional seja realizado por órgãos públicos. Vale dizer que o texto da norma não veda o controle dos javalis, mas proíbe somente a delegação de tal controle a particulares, sob a forma de caçadores que se cadastram para, impunemente, exercer atividades de caça, prática vedada por norma constitucional.Como se vê, no âmbito do Estado de São Paulo, a referida instrução normativa torna-se ainda mais descabida, à medida que contraria norma constitucional e legislação específica, ambas proibitivas da prática.
Em 9 de agosto de 2018, as Secretarias Estaduais do Meio Ambiente e da Agricultura e Abastecimento editaram a Resolução Conjunta SAA/SMA-1, que estabelece, em sua alínea “b” de seu artigo 1º, que o manejo do javali contará com a equipe de controle com respectivos Certificados de Regularidade no Cadastro Técnico Federal, o que viola, frontalmente, a Lei Estadual, além de contrariar a própria Constituição da República que, em seu artigo 225, §1º, inciso VII, veda a crueldade com animais.
Convém lembrar que a Constituição da República mantém-se no topo da pirâmide proposta por Hans Kelsen, tendo abaixo dela os tratados internacionais, as leis complementares e ordinárias, num quadro que também é integrado por decretos regulamentares e decretos legislativos. Já as instruções normativas, portarias, avisos e regimentos internos são atos normativos que constituem apenas ferramentas de trabalho de órgãos administrativos. Como tal, a instrução normativa somente pode ditar regras a serem seguidas pelos agentes de um órgão público e, jamais pode inovar o ordenamento jurídico ou se opor ao estatuído por norma constitucional, ou pela lei ordinária. Instruções Normativas e Resoluções não podem se opor à lei ordinária e à norma constitucional. Existindo no Estado de São Paulo norma constitucional e lei ordinária que vedam a caça, por óbvio que instruções normativas e resoluções devem ceder passo à legislação maior, até porque não existe lei federal permissiva da caça.
Ao apreciar a Ação Direta de Inconstitucionalidade- ADI 350, proposta pelo Procurador-Geral da República contra o artigo 204 da Constituição do Estado de São Paulo, por suposta violação ao art. 24, § 1º, da Constituição Federal, o relator Ministro Dias Toffoli, seguido de outros seis ministros do Supremo Tribunal Federal, entendeu que não há lei permissiva da caça, podendo os Estados legislarem sobre o tema:
“…pela leitura do texto federal, em especial pelo seu art. 1º, não se pode concluir que a caça seja uma atividade permitida pela legislação federal. Na verdade, como princípio geral, a Lei nº 5.197/67 proíbe a utilização, a perseguição, a destruição, a caça ou a apanha dos animais de quaisquer espécies, em qualquer fase do seu desenvolvimento e que vivem naturalmente fora do cativeiro – a fauna silvestre –, bem como seus ninhos, abrigos e criadouros naturais. Por outro lado, a lei federal prevê a possibilidade de exceções, mas sempre condicionada, a teor do § 1º do mesmo artigo 1º, à permissão expressa, se peculiaridades regionais comportarem o exercício da caça, o que, segundo a lei, se daria mediante regulamento do Poder Público Federal. Desse modo, o exercício da caça é expressamente vedado no Brasil, salvo quando, nos termos da Lei federal nº 5.197/67, peculiaridades regionais comportarem o seu exercício, e desde que haja permissão em regulamento. Trata-se de norma geral, que propicia a edição de normas suplementares pelos Estados, destinadas a pormenorizar seu conteúdo amplo e a adequar seus termos às suas particularidades regionais.”
A maioria dos Ministros do STF decidiu que o Estado pode reforçar e preservar a proteção à fauna local, concluindo pela competência suplementar do Estado para legislar sobre a caça:
“Desse modo, a competência legislativa da União em tema de caça deve limitar-se ao estabelecimento de normas gerais, de forma a não excluir a competência suplementar dos Estados-membros. Não pode a União regular peculiaridades regionais que, nos termos da Constituição de 1988, são de competência dos Estados-membros.
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Assim sendo, como a autorização da caça deve se ater às peculiaridades regionais, levando em conta os ecossistemas locais, não há dúvida de que os Estados-membros têm, sim, competência para definirem onde, como, em que época e em que casos seria possível a atividade de caça, assim como, lhes é permitido, atendendo às suas singularidades, reforçar a proteção e a preservação da fauna local.” (grifos originais)
E a maioria dos ministros também entendeu que o Estado de São Paulo não comporta a caça, ressaltando que, ao proibir a caça, o Estado não institui uma vedação arbitrária, mas plenamente justificável e imprescindível para atender suas singularidades:
“A propósito, conforme plenamente demonstrado pela Assembleia Legislativa paulista, exatamente por peculiaridades regionais, o Estado de São Paulo não comporta a caça em nenhum ponto de seu território, o que, evidentemente, não se trata de vedação arbitrária, mas sim plenamente justificável e imprescindível para atender suas singularidades”
Vale repetir que não existe liberação da caça restrita ao javali, e sim liberação da caça, uma vez que essa atividade não é passível de fiscalização, deixando, dessa forma, os caçadores livres para perseguir e eliminar a vida de animais de quaisquer espécies, incluindo as silvestres ameaçadas de extinção. Dessa forma, é forçoso concluir que a Instrução Normativa nº 3, de 2013, editada pelo IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), bem como a Resolução em epígrafe, autorizativa do controle populacional do javali acabaram por propiciar a caça de qualquer espécie, e não à caça restrita ao javali. Ademais, o dever de controlar a população das espécies declaradas nocivas incumbe ao Poder Público, e não a particulares (pessoas físicas ou jurídicas não governamentais).
Grave ainda o fato de que não existe estudo algum sobre o impacto causado pela liberação da caça ao javali na população dessa espécie. Na verdade, o Estado não exerce controle algum sobre a atividade que liberou.
Em matéria veiculada em julho de 2016, pelo programa “Fantástico”, da Rede Globo, o Ibama, por um de seus técnicos, declarou que essa atividade é de difícil fiscalização e que a grande maioria dos cadastrados para a eliminação do javali, não encaminhou àquele órgão o relatório de suas atividades, como prevê o artigo 7,º da Instrução Normativa autorizativa da caça ao javali.Ora, se a renovação do cadastro está condicionada à apresentação de relatórios, como esses cadastros estão sendo renovados?
Desde 2013, a caça ao javali está liberada, sem que de tal prática se verifique o decréscimo daquela população, o que demonstra a ineficácia desse suposto método de controle. Ora, se não existem relatórios, nem fiscalização, como se pode inferir que a caça represente um método efetivo de controle? Não há como comprovar, ou ao menos verificar, se os caçadores estão contribuindo com o controle do javali. Â medida que não existem dados sobre o número de javalis existentes no Estado de São Paulo, assim como não existem dados relativos ao número de caçados, não se pode inferir que os caçadores estejam exercendo o controle da população dessa espécie.
Ao se cadastrar como controlador, por óbvio, que o caçador busca diversão, e não exercer o controle da população do javali. Assim, é forçoso concluir que a solução da problemática do javali colocaria um fim na liberação da caça, o que contraria os interesses dos caçadores, que têm nessa atividade o prazer de matar por esporte, e por entretenimento. Em redes sociais, muitos deles admitem que não seria interessante que o javali venha a ser contido, uma vez que a manutenção dessa espécie como populosa justifica e mantém a permissão à caça.
Ocorre que a distribuição dos javalis pelo Brasil não obedece a um padrão natural, e sim a um padrão de distribuição antrópica, ou seja, promovida pelo homem, motivo por que já se constata a presença de javalis até em Ilhabela, local onde jamais existiu a criação dessa espécie. Impossível não suspeitar do fato de que os próprios caçadores estariam dando causa à expansão do javali no Estado de São Paulo e em outras regiões do país. Muitos deles já foram flagrados conduzindo javalis vivos, o que reforça tal suspeita.
Para o controle do javali, as armadilhas são tidas como um método mais eficiente do que a caça.
Na já citada matéria veiculada pelo “Fantástico”, foi abordada a questão da crueldade da caça ao javali, mostrando cenas de violência explícita aos animais envolvidos, oportunidade em que o Ibama, por um de seus técnicos, declarou que a prática da caça ao javali configura maus-tratos à essa espécie e aos cães usados em seu encalço, atestando ainda a ocorrência de abusos na execução da instrução normativa do Ibama. De fato, muitos dos cães utilizados nas caçadas são destroçados pelos javalis, ao passo que outros deixam de ser resgatados após as caçadas, o que resulta na introdução dessa espécie na natureza. Combate-se uma espécie invasora introduzindo-se outra, o que denuncia o contrassenso dessa atividade.
Inexiste argumento que se preste a justificar a cruel prática da caça, sobretudo por meio de armas de fogo, que podem deixar animais alvejados em situação de agonia, por dias, antes do óbito.
No caso de existir a possibilidade de decorrer de uma atividade o risco de ocorrência de um dano irreversível, caberá a quem propõe tal atividade o ônus da prova. É o que informa o princípio da precaução. Assim, por seu potencial danoso, a caça só poderia ter sido liberada mediante estudo de avaliação dos riscos envolvidos, o que também jamais ocorreu. E a problemática representada pelos javalis já havia sido identificada em outros países, quando a espécie foi trazida para o Brasil e a criação desses animais foi autorizada, sem considerar a potencialidade de introdução da espécie no ambiente natural e os consequentes agravamos para o meio ambiente, para a agricultura e até mesmo para a saúde pública. Violou-se o princípio da precaução, principal norteador das políticas públicas ambientais, à medida que não se evitou os riscos e a ocorrência dos danos ambientais representados pela criação do javali no país.
Enquanto instruções normativas e resoluções, de forma aberrante, inovam no ordenamento jurídico, liberando prática vedada por lei estadual e norma constitucional, as atividades de caça prosseguem impunes, vitimando, inclusive, as espécies silvestres ameaçadas, em um Estado que não comporta a caça, em ponto algum de seu território; em um país em que a Constituição da República atribui ao Poder Público vedar as práticas que submetem animal à crueldade.
Vanice Teixeira Orlandi é advogada, presidente, desde 2005, da Uipa, União Internacional Protetora dos Animais, entidade centenária, fundada em 1895, responsável pela instituição do Movimento de Proteção Animal no país. Possui também formação em Psicologia, com especialização em Psicologia da Educação.