Vanice Teixeira Orlandi
Além das cruéis provas de montaria realizadas em rodeios, os animais ainda são vitimados pelas provas que envolvem perseguição seguida de laçada e de derrubada.
1.DAS CHAMADAS “PROVAS FUNCIONAIS”
Conforme alegado pelos defensores dos rodeios, grande parte das provas exibidas, como as que envolvem laçadas e derrubadas, seriam funcionais, à medida que apenas reproduzem as atividades, normalmente, realizadas no campo. Tais práticas, entretanto, jamais fizeram parte da rotina das fazendas.
Diante da necessidade de imobilização para cuidados médicos, os bezerros não são laçados, mas conduzidos aos currais que possuem instalações apropriadas à contenção dos animais.
Segundo consta da literatura atinente aos métodos de contenção de bovinos, tratamentos clínicos em que há necessidade de derrubada do animal exigem a escolha de um solo plano e macio, coberto com colchões de espumas ou cama de capim. Do contrário, podem ocorrer graves traumatismos, ou até mesmo lesões irreversíveis do nervo radial, que podem levar à paralisia permanente.
Como ensina o Prof. Dr. Duvaldo Eurides da Universidade Federal de Uberlândia, em seu livro “Métodos de Contenção de Bovinos”, p. 44, (Rio Grande do Sul, editora Agropecuária, 1998), laçadas e derrubadas são condenadas pelas técnicas de produção pecuária, justamente, por elevarem o estresse e os riscos de fraturas e de morte a que são expostos os animais.
1.1Do Laço do Bezerro (calf roping)
O laço que atinge o pescoço do bezerro o faz estancar de forma abrupta, tracionando-o para trás, em sentido contrário ao que corria. O laçador, então, desce do cavalo e, segurando o bezerro pelas patas, ou até mesmo pela prega cutânea, ergue-o do solo até a altura de sua cintura, para, em seguida, atirá-lo violentamente ao chão, sendo três de suas patas amarradas juntas. São utilizados bezerros de apenas quarenta dias de vida, já que o animal não pode ultrapassar 120 quilos.
Por se tratar de uma competição, cujo tempo é fator primordial, tudo é feito em ritmo acelerado, de maneira grosseira e atabalhoada, o que eleva a possibilidade de traumatismos que podem resultar em sequelas como rompimento de órgãos internos, lesões nos membros, nas costelas e na coluna vertebral, além de deslocamento de vértebra e de disco intervertebral.
E os bezerros utilizados em tais provas são submetidos à privação de alimento para que mantenham um peso bem abaixo do normal e, dessa forma, tenham a leveza e o movimento exigidos por essa modalidade. Se o bezerro fosse alimentado adequadamente, seu peso dificultaria a atividade do peão de tracioná-lo e de erguê-lo do solo, comprometendo a execução da prova. A má alimentação leva à desnutrição, o que também traz sequelas.
O artigo publicado na revista “The Animals Agenda”, em março de 1990, traz depoimento, nesse mesmo sentido, do veterinário E. J. Finocchio:
“Testemunhei a morte instantânea de bezerros após a ruptura da medula espinhal… Também cuidei de bezerros que ficaram paralíticos e cujas traqueias foram total ou parcialmente rompidas. Ser atirado violentamente ao chão tem causado a ruptura de diversos órgãos internos, resultando em uma morte lenta e agonizante”.
1.2 Do Laço em Dupla (team roping)
Na team Roping (Laço em Dupla,) um dos peões laça a cabeça de um garrote, enquanto o outro laça a sua perna traseira; em seguida, os peões o esticam entre si, possibilitando danos à coluna vertebral, além de lesões orgânicas.
1.3 Da Prova de derrubada (bulldogging)
Na bulldogging, o peão desmonta de seu cavalo, em pleno galope, atirando-se sobre a cabeça do animal em movimento, devendo derrubá-lo ao chão, agarrando-o pelos chifres e torcendo lhe violentamente o pescoço, o que pode ocasionar deslocamento de vértebras, rupturas musculares, lesões orgânicas e paralisia gerada por danos irreversíveis à coluna vertebral. Durante uma prova de perseguição seguida de derrubada, na arena da 56º Festa do Peão de Boiadeiro de Barretos, um garrote teve de ser morto, em virtude da paralisia permanente provocada pelo peão que lhe quebrou a coluna vertebral.
1.4 Da Prova de Apartação (team penning)
Na team Penning, um trio tem a função de retirar três animais de um rebanho de trinta. No momento da prova, três números são sorteados, e um trio de peões devem retirar os três animais correspondentes aos números sorteados, tomando cuidado para não deixar que mais de quatro animais cruzem a linha de arbitragem.
O rebanho é colocado do lado oposto a um curral montado na arena. Os animais são perseguidos por peões que galopam em velocidade em seu encalço. Cercados e acuados, os animais disparam em fuga, em função do intenso temor que lhes é incutido na arena.
- DA TORTURA ALÉM DAS ARENAS
E a imposição de sofrimento não se restringe ao que se vê na arena, uma vez que vários outros fatores expõem o animal a atos de abuso e de maus-tratos.
2.1 Dos Treinos
Peões e vaqueiros declaram que refazem por diversas vezes o mesmo procedimento em busca de um melhor desempenho. Laçadores não se constrangem em divulgar que não laçam menos de cem bezerros por dia, em treinos que se prolongam até a madrugada.
Assim como nas montarias, os laçadores treinam por várias horas. A revista “Rodeo Life”, de maio de 1997, publicou entrevista com um deles, da qual se destaca o seguinte trecho:
“Treinava das cinco da tarde até às dez da noite, sem trégua. Sempre passava da meia noite e não amarrava menos de cem bezerros”.
2.2 Da Tortura Prévia
Da necessidade de se forjar uma perseguição decorre a sujeição do animal à uma tortura prévia. Nas provas que simulam uma perseguição, como é o caso das provas de laço e da chamada “bulldogging”, há necessidade de se criar, artificialmente, uma razão para que o animal adentre a arena em fuga, em momento determinado. O animal é, então, confinado em um pequeno cercado, onde é atormentado (encurralado, espancado com pedaços de madeira, e submetido a vigorosas e sucessivas trações de cauda), antes de ser solto na arena.
2.3 Da Perseguição
Em modalidades como a Team Pening , Buldogging, e nas provas de laço o animal é perseguido por peões que, em velocidade, galopam no seu encalço, incutindo temor no animal.
2.4 Do Transporte
O transporte não proporciona condições mínimas de segurança; o embarque é realizado de forma precária, com rampas de acesso inadequadas, o que sujeita o animal a fraturas.
2.5 Da Preparação
Abusos também ocorrem antes de o animal ser solto na arena. Por recusar-se a entrar no brete, pequeno cercado onde lhe é colocado o sedém, o animal é submetido a toda sorte de agressões.
2.6 Do Manejo.
Os animais sofrem violência por se mostrarem vagarosos, ou por não se posicionarem conforme a vontade e conveniência dos organizadores dos rodeios.
2.7 Das Quedas e de outros Acidentes
Ao corcovear de maneira desordenada, não raro, o animal vem a chocar-se contra as grades de proteção da arena e são submetidos a constantes e sucessivas quedas, das quais podem decorrer ferimentos, contusões, fraturas, entorses, luxações, rupturas musculares e artrites.
2.8 Do Intenso Ruído
E o extremo ruído proveniente da queima de fogos, dos shows musicais e dos gritos incessantes do locutor, tudo em altíssimo volume é estressante para o animal, cuja acuidade auditiva é várias vezes superior à humana. E a soltura de fogos, como se sabe, também provoca forte temor nos animais.
2.9 Da Privação de Sono
O horário em que os eventos são realizados submete os animais à privação de sono. Em condições normais, o animal adormece pouco depois do entardecer, para só despertar com os primeiros raios do dia. Já os animais que são utilizados em rodeios são privados de sono até a madrugada, quando retornam do tal evento, tendo pois o seu período normal de sono de 12 (doze) horas reduzido para 4 (quatro) ou até 3 (três) horas.
3. DA VIOLAÇÃO À LEGISLAÇÃO PROTETIVA
3.1 Dos Maus-Tratos
Vê-se que os animais são submetidos a sofrimento e a risco de lesões, o que viola a legislação atinente à tutela jurídica dos animais.
Merece também registrar que os rodeios, pelos castigos que impõem aos animais por meio do sedém e das esporas que lhes castigam o baixo-ventre, incidem no Decreto Federal nº 24.645/34, que tem força de lei, por ter sido editado em período de excepcionalidade política, quando cabia ao Chefe do Executivo o poder legiferante.
Tal decreto permanece em vigor, salvo no tocante às penas ali instituídas, uma vez que o Decreto Federal nº 11, de 18 de janeiro de 1991, que o havia revogado foi tornado sem efeito pelo Decreto Federal s/nº de 29 de novembro de 1991.Ademais, por sua natureza de lei, o Decreto Federal nº 24.645/34 só pode ser revogado por lei , não bastando para tal mero decreto.
Referido decreto federal, em seu artigo 8º, enuncia que “consideram-se castigos violentos, sujeitos ao dobro das penas cominadas na presente lei, castigar o animal na cabeça, baixo-ventre ou pernas.”
E prática de maus-tratos foi assim tipificada pela Lei Federal nº 9.605/98:
“Artigo 32. Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos:
Pena- detenção, de três meses a um ano , e multa.
(…)
- 2º. A pena é aumentada de um sexto a um terço, se ocorre morte do animal.”
Como a lei não contém palavras inúteis, a existência do verbo “ferir” demonstra que as condutas de “abuso” e de “maus-tratos” podem se consumar, independentemente, da ocorrência de lesão, imprescindível apenas às modalidades “ferir” e “mutilar”.
Se a lesão fosse condição essencial à consumação do crime de maus-tratos, não haveria a necessidade de o dispositivo contemplar as práticas de maltratar e de ferir.
Maus-tratos é o delito cometido por quem impõe sofrimento físico ou mental a animal, prática que se identifica nos rodeios, à medida que os animais são castigados por golpes de esporas, açoites e espancamentos, perseguidos e acossados, além de serem induzidos a corcovear, forçadamente, mediante a utilização de instrumentos como o sedém e as esporas.
3.2 Dos Atos de Abuso
Essa submissão a sofrimento e ao risco de lesões violam a legislação atinente à tutela jurídica dos animais. Convém notar que os rodeios incidem na Lei de Crimes Ambientais, não só na modalidade “maus-tratos”, mas também na modalidade “abuso”, prática que tem por pressuposto a desigualdade entre as partes, em que uma delas dispõe de condições que a permitem exercer o domínio sobre a outra, em virtude de idade, enfermidade, poder familiar, deficiência, relação de emprego, exercício de cargo público ou privado ou da dependência em que se encontra a pessoa constrangida.
Quem abusa se prevalece da posição privilegiada que ocupa em relação ao outro, para lhe impor a sua vontade, como se agisse no exercício de um direito legal e de um poder legítimo.
A legislação protege o hipossuficiente, o mais frágil, justamente, para que não se torne alvo de subjugação, de exploração por parte daquele que se encontra em uma posição privilegiada.
Com efeito, a lei protege aqueles que estão em posição vulnerável e que podem tornar-se alvo de abuso como os menores, os portadores de deficiência, os idosos, os empregados, os consumidores e até os próprios administrados. Além de ser a transgressão de uma regra moral e, portanto, uma prática censurável, o abuso também constitui uma infração legal.
A Lei Federal nº 4.898/65 regula o direito de representação nos casos de abuso de autoridade e a Lei Federal nº 9.784/99 protege os direitos dos administrados. O Código Civil confere proteção jurídica aos incapazes por meio da representação e assistência, possibilitando o exercício dos seus direitos pessoais e patrimoniais. São incapazes os menores, os que não têm o discernimento necessário, ou não podem exprimir sua vontade, os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, os excepcionais e pródigos.
Abusos de poder são repelidos por meio de mandado de segurança, garantia prevista pela Constituição da República, em seu artigo 5°, inciso LXIX. O abuso sexual configura crime contra a dignidade sexual, tipificado pelo Código Penal (Lei Federal nº 12.015/2009). Já o abuso de confiança constitui qualificadora do crime de furto, art.155, §4º, inciso II, do Código Penal, ao passo que o abuso de incapaz é crime previsto pelo art.173 do Código Penal.
E o abuso de animais foi tipificado pelo artigo 32 da Lei Federal nº 9.605/98.
3.3 Da Vulnerabilidade do animal
O homem coloca-se no topo da hierarquia que ele mesmo engendrou, subjugando o animal, como se estivesse no exercício de um direito legítimo, exatamente, como faz com os humanos vulneráveis.
Em vez de considerar o animal como ser vivente dotado da capacidade de sentir, e protegê-lo como criatura vulnerável, o homem se vale de sua condição privilegiada para incorrer em abuso. Dessa forma, os animais são sequestrados e expropriados de suas vidas e de seu mundo.
Diversos fatores colocam o animal em situação de extrema vulnerabilidade em relação ao homem. Ainda que possua as mesmas estruturas cerebrais que produzem a consciência em humanos, o animal detém uma capacidade cognitiva diferenciada, que o coloca em desvantagem frente aos humanos. Embora possa demonstrar, por meio de pinotes e corcoveios, a aflição que experimenta, o animal não é capaz de se expressar, por palavras. Desprovido de meios de defesa contra a subjugação imposta por humanos, e sem possuir as condições necessárias para fazer valer a sua vontade, o animal torna-se alvo fácil de agressões e de sequestro (privação de liberdade), sem chance alguma de fuga ou de protesto.
3.4 Das Práticas de Abuso com animal, em rodeios.
Todas as atividades apresentadas em rodeios como modalidades esportivas constituem o abuso de que trata o artigo 32 da Lei de Crimes Ambientais.
Afligir o animal manso com uma corda na região dos flancos e com brutais golpes de esporas para que corcoveie como se fosse bravio; transformar bezerros em alvo de perseguição; atirar-se sobre a cabeça de um garrote em movimento e torcer lhe o pescoço para derrubá-lo ao chão; perseguir, a galope e em velocidade, o animal para cercá-lo e acuá-lo como forma de entreter humanos são práticas que constituem o abuso de que trata a Lei de Crimes Ambientais.
- DAS LEIS PERMISSIVAS DOS RODEIOS
São permissivas da realização de rodeios a Lei Estadual Paulista nº 10.359/99, a Lei Federal nº 10. 221/2001 e a Lei Federal nº 10.519/2002.
Tendo em vista que a crueldade é inerente à atividade dos rodeios e não pode ser coibida por meio de regulamentação, e considerando ainda que a crueldade é prática vedada pela Constituição da República, conclui-se que as três normas são inconstitucionais.
Convém lembrar que a lei de grau inferior deve ser compatível com a de grau superior, que é a norma constitucional. Como se sabe, a incompatibilidade se resolve em favor da norma de grau mais elevado.Para ser válida, portanto, a lei deve guardar conformidade com os preceitos e princípios da Constituição da República.
A Lei Estadual nº 10.359/99 autoriza o uso de sedém macio e esporas rombas. Ora, se o sedém e as esporas, pela natureza do estímulo que provocam, implicam sofrimento, seu uso constitui crueldade a despeito da lei que o permite. A norma jurídica não tem a propriedade de alterar a natureza dos fatos e, portanto, não pode legitimar prática cruel.
Em acórdão exarado pela 8ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, a relatora Teresa Ramos Marques, ao dar provimento à apelação do Ministério Público, mencionou que “um certo instrumento, ou uma determinada prova, não deixam de ser cruéis simplesmente porque o legislador assim dispôs. Não se desfaz a crueldade por expressa disposição de lei”.
E a Lei Federal nº 10. 221/2001 alçou à categoria de atleta profissional o peão que participa de rodeios, de provas de laço e de vaquejadas.
Já a Lei Federal nº 10.519/2002 permite o uso de esporas rombas, de laços com redutor de impacto, mas estabelece, em seu artigo 4º, que “os apetrechos técnicos utilizados nas montarias, bem como as características do arreamento, não poderão causar injúrias ou ferimentos aos animais.”
Tendo em vista que a injúria tem o sentido de causar trauma, provocar lesão ou praticar ato ofensivo ao animal, decerto que o uso do sedém está vedado pela Lei Federal nº 10.519/2002 que, aliás, não autoriza, expressamente, seu uso em nenhum de seus dispositivos.
Essa, inclusive, a decisão da Corte Paulista (Apelação Cível 539.402-5/9, Rel. Des. Samuel Junior, j. 29.11.2007):
“Como a lei federal veda instrumentos que possam causar injúrias ou ferimentos, a lei estadual nº 10.494/99 (anterior), na parte em que admite a utilização de sedém, está revogada.”
- OFENSA À NORMA CONSTITUCIONAL PROTETIVA DOS ANIMAIS
São inconstitucionais as normas permissivas de rodeios, à medida que afrontam a Constituição da República, que em seu artigo 225,§1º, inciso VII, enuncia incumbir ao Poder Público proteger a fauna, vedadas, na forma da lei, as práticas que submetam animais à crueldade.
A inconstitucionalidade da lei deve ser arguida, por via incidental, nos autos das ações civis públicas, que visam condenar as Municipalidades à obrigação de não fazer, consistente em não conceder alvarás às companhias de rodeio que se valem de instrumentos de tortura, tais como sedém, esporas , peiteiras, et cetera, além de submeterem animais a provas cruéis como as de laço e as de derrubada.
O Tribunal de Justiça de São Paulo declarou, por via incidental, a inconstitucionalidade da Lei Estadual nº 10.359/99 e da Lei Federal nº 10.519/02:
“A despeito da Lei Estadual 10.359/99 regulamentar a prática da atividade de rodeio e a Lei Federal 10.519/02, por sua vez, regular as provas de laço, é indubitável que tais atividades causam sofrimento aos animais que protagonizam as apresentações, considerando-se que utilizam o sedém e outros petrechos a fim de ‘estimular’ os animais. Dessa forma, estes diplomas legais são inconstitucionais”.(TJSP, Apelação n° 0006162-86.2009.8.26.0457, Rel. Des. Ruy Alberto Leme Cavalheiro, j. 28.04.2011).
- DA EMENDA CONSTITUCIONAL Nº96/2017
A PEC nº 96/2017 acrescentou um parágrafo sétimo ao artigo 225 da Constituição da República para estabelecer que “não se consideram cruéis as práticas desportivas que utilizem animais, desde que sejam manifestações culturais, conforme o §1º do art.215 desta Constituição Federal, registradas como bem de natureza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro, devendo ser regulamentadas por lei específica que assegure o bem-estar dos animais envolvidos.”
Cabe lembrar que a norma constitucional protetiva dos animais, estampada no artigo 225,§1º, inciso VII, é originária, ou seja, promulgada pelo poder constituinte originário, ao passo que o texto da emenda citada deriva do poder constituinte, o que permite o questionamento de sua constitucionalidade.
Com efeito, a emenda aprovada faz menção a práticas desportivas “regulamentadas por lei específica que assegure o bem-estar dos animais envolvidos”
Ora, as práticas desportivas ali mencionadas, ninguém ignora, são os rodeios e as vaquejadas, atividades rentáveis que incorrem em crueldade inerente, de tal forma, à sua realização, que não há como coibi-la por meio de “lei específica que assegure o bem-estar dos animais envolvidos”, como impõe a emenda aprovada. E a exposição à crueldade, não é demais repetir, é situação vedada pela Constituição da República.
Assim, não podemos fugir à irrefragável conclusão de que regulamentação alguma pode impedir o risco de lesão permanente e o sofrimento a que os animais ficam expostos, uma vez que a prática já consiste em perseguí-lo e tracionar lhe a cauda, para derrubá-lo ao solo.
Voltando à emenda, o texto declara que “não se consideram cruéis as práticas desportivas que utilizem animais, desde que sejam manifestações culturais…”.
Não há diploma legal, vale repetir, capaz de alterar a natureza das coisas e dos fatos. Não há norma, nem mesmo de natureza constitucional, que possa legitimar como esporte ou cultura uma prática de natureza violenta, que representa uma ameaça à integridade física e mental dos animais. Sua realização constitui crueldade, a despeito de norma estadual, federal ou constitucional que a autorize e a classifique como cultura ou prática desportiva.
Importa ainda destacar que a capacidade de sentir dor, e portanto de sofrer, não difere entre humanos e animais, o que torna ainda mais censurável a primitiva prática de se entreter com o padecimento desses seres. Neurocientistas, de vários países, subscreveram um manifesto afirmando que os animais possuem consciência, uma vez que as estruturas cerebrais que produzem a consciência em humanos também existem nos animais.
Valem, a respeito, as palavras do cientista PHILIP LOW, pesquisador americano da Universidade Stanford e do MIT (Massachusetts Institute of Technology), em entrevista concedida à Revista “Veja” de abril de 2012:
“As áreas do cérebro que nos distinguem de outros animais não são as que produzem a consciência”…Sabemos que todos os mamíferos, todos os pássaros e muitas outras criaturas, como o polvo, possuem as estruturas nervosas que produzem a consciência. Isso quer dizer que esses animais sofrem. É uma verdade inconveniente: sempre foi fácil afirmar que animais não têm consciência. Agora, temos um grupo de neurocientistas respeitados que estudam o fenômeno da consciência, o comportamento dos animais, a rede neural, a anatomia e a genética do cérebro. Não é mais possível dizer que não sabíamos…a habilidade de sentir dor e prazer em mamíferos e seres humanos é muito semelhante.
É preciso ressaltar que nosso ordenamento jurídico reconhece os animais como seres viventes, dotados da capacidade de sofrer, motivo por que são tutelados, inclusive, por norma constitucional.
Por sua brutalidade e natureza inerentemente cruel, a prática das vaquejadas e das provas de rodeios jamais vão se coadunar à Constituição da República, ainda que seu próprio texto, por mal ajambrada emenda e por interesses bem diversos daqueles que inspiraram o nosso festejado artigo 225, §1º, inciso VII, empenhe-se na pretensão de declarar o contrário.
- DA OFENSA AOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS, ADMINISTRATIVOS E AMBIENTAIS
Estabelece o artigo 37 da Constituição da República que “a administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (…).”
E Lei Federal nº 9.784/99, em seu artigo 2º, que regula o processo administrativo, visando proteger os direitos dos administrados, impõe a observância dos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.
Todos os princípios que regem a Administração Pública devem ser analisados à luz da imposição estampada no artigo 225, §1º, inciso VII, da Constituição da República, que enuncia incumbir ao Poder Público vedar as práticas que submetam animal à crueldade e também da norma do art. 170, VI, que obriga o Poder Público a interceder para que a exploração econômica não se sobreponha à tutela ambiental.
Quanto à alegação de que os rodeios constituem uma prática economicamente rentável, cabe replicar que a Constituição da República condicionou o trabalho e a livre iniciativa à preservação do meio ambiente, cuja defesa foi elevada à categoria de princípio da ordem econômica, possibilitando ao Poder Público interceder para que a exploração econômica não se sobreponha à tutela ambiental. Uma atividade não pode ser desenvolvida, sem a estrita observância da legislação ambiental.
7.1 Do Princípio da Legalidade
O particular pode fazer tudo o que a lei não veda, ao passo que à Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza. Embora haja lei permissiva da prática, a concessão de alvará para rodeios é questionável, considerando a norma constitucional que impõe à Administração Pública o dever de vedar as práticas que submetam animal à crueldade, tendo em vista toda a legislação pátria que os protege e a Lei Federal nº10.519/2002, que em seu art.4º, veda o uso de apetrechos técnicos que possam causar injúrias ou ferimentos aos animais.
7.2 Do Princípio da Moralidade
A Administração deve atuar na conformidade de princípios morais, o que não se coaduna à concessão de alvará para evento em que se relega qualquer obrigação moral diante de seres vivos. É necessário que o administrador exerça um controle moral essencial à Administração Pública.
7.3 Do Princípio da Eficiência
O Princípio da eficiência deve ser aplicado em todos os níveis da Administração Pública. É o princípio da boa administração, que está ligado ao dever administrativo por excelência que consiste em cumprir a lei. Com base em seu poder discricionário pode a Administração Pública optar pela direção que lhe seja mais conveniente e oportuna, desde que a escolha se coadune aos regramentos legais. Ao conceder alvará para a realização de rodeio, muitas vezes patrocinando e promovendo tais eventos, a Administração Pública não só deixa de cumprir, de forma eficiente, a tarefa de defender os animais, imposta pela Constituição da República, como viola esse mandamento constitucional, sendo a primeira a contrariar a lei que lhe incumbe fazer cumprir. Ao invés de vedar a prática de rodeio, é a própria Municipalidade que a promove.
7.4 Do Princípio da Finalidade
O Princípio da Finalidade é inerente ao princípio da legalidade, pois corresponde ao dever de aplicar a lei, cumprindo o objetivo para a qual foi editada. Segundo ensinam os juristas, foi alçado a princípio autônomo pela necessidade de prevenir interpretações toscas e superficiais, que ocorrem por descuido, ou por conveniência do administrador. O ato administrativo de autorizar e promover rodeios teria como suporte a Lei Federal nº 10.519/2002, que veda, em seu art.4º, a utilização de apetrechos técnicos nas provas de montarias, que causem injúrias ou ferimentos aos animais. Frustra-se a finalidade postulada pela Lei Federal nº 10.519/2002 e pela legislação protetiva, o que equivale a desatender a tais normas.
7.5 Do Princípio da Motivação
É dever da Administração justificar seus atos, apontando-lhes as razões de fato e de direito que os autorizam. Ainda que se trate de ato discricionário da Administração Pública, cabe-lhe o dever da motivação, ou seja, a obrigação de exteriorizar o motivo do ato. Diante da norma constitucional que a obriga a vedar as práticas que submetam animal à crueldade, e diante da restrição do artigo 170, inciso VI, relativo aos limites das atividades econômicas, deveria a Administração Pública justificar os motivos pelos quais opta pela concessão de alvará para a realização de rodeios.
7.6 Do Princípio do Interesse Público
Toda ação administrativa deve atender ao fim legal a que está obrigada, que é o interesse público. Como os animais integram o meio ambiente, resta claro que o interesse que qualifica a sua tutela é de natureza pública. Esse é o interesse público que deveria pautar a ação administrativa, e não o interesse privado do setor econômico do agronegócio.
7.7 Do Princípio da Precaução
Ainda que se pudesse colocar em dúvida a ocorrência de sofrimento físico e mental aos animais utilizados em rodeios, a atividade não poderia ser realizada, ante o princípio da precaução, que impõe a abstenção do ato, sempre que houver ameaça de dano, ainda que não haja certeza científica sobre a existência desse dano.
Na ausência de um consenso, se o ato pode ser danoso, o ônus da prova cabe a quem pretende realizar o ato.
Compete ao Poder Público prevenir condutas lesivas ao meio ambiente, atuando para a abstenção do ato que represente risco.
O princípio da precaução foi inserido em nosso ordenamento jurídico por meio do Decreto Legislativo nº 1, de 3 de fevereiro de 1994.
E a Corte Paulista tem aplicado o princípio da precaução para decidir pela proibição do uso de instrumentos cruéis nos rodeios.
“Existindo dúvida sobre a periculosidade de que determinada atividade representa para o meio ambiente, deve-se decidir favoravelmente a ele – ambiente – e contra o potencial agressor”. (TJSP, Apelação n° 0013772-21.2007.8.26.0152,Rel. Des. Renato Nalini, j. 31.03.2011).
- DA EXPLORAÇÃO ECONÔMICA DA DOR
E o mesmo julgado reconheceu que o rodeio se constitui em verdadeira “exploração econômica da dor”, conforme tese defendida pela UIPA, desde a década de 1990:
“Contundência dos laudos e estudos produzidos a comprovar que a atividade do rodeio submete os animais a atos de abuso e maus-tratos, impingi-lhes intenso martírio físico e mental, constitui-se em verdadeira exploração econômica da dor- Incidência do art.225,§1º, VII da Constituição Federal, do art.193, X, da Constituição Estadual, além do art.32 da Lei nº9605/98, que vedam expressamente a crueldade com os animais.” (TJSP, Apelação n° 0013772-21.2007.8.26.0152,Rel. Des. Renato Nalini, j. 31.03.2011).
De fato, não há como sustentar que os rodeios integram o patrimônio cultural brasileiro. Laçar bezerros e atirar-se sobre a cabeça de um garrote, em pleno galope, para derrubá-lo ao chão, constituem práticas que jamais fizeram parte da rotina das fazendas.
A indumentária utilizada pelos peões, travestidos de cowboys americanos, já denuncia o plágio da cultura americana, confirmado, ainda pela origem inglesa das denominações dadas às modalidades apresentadas no rodeio como Bareback, Bull Riding, Team Penning, Calf Roping, Team Roping, Buldogging e Saddle Bronc.
Trata-se de mera reprodução de um mau costume americano.
Ainda que se pudesse atribuir alguma relevância cultural aos rodeios, ou às vaquejadas, convém lembrar que o Supremo Tribunal Federal, em festejado acórdão contra a “farra do boi”, decidiu que “o pleno exercício de manifestações culturais não prescinde da observância da norma constitucional que veda a crueldade com os animais”.
Vai daí a conclusão de que não há valor cultural que justifique o emprego de métodos cruéis para com animais.
A legítima cultura de um povo inspira-se em suas próprias raízes e história; reclama autenticidade. Não se presta a apresentar como sua prática importada da América, onde também é repudiada.
A exploração econômica da dor, sobre o lombo de animais fustigados, não pode ser concebida como esporte ou cultura. Constitui sim, crueldade. Vanice Teixeira Orlandi é advogada, presidente, desde 2005, da Uipa, União Internacional Protetora dos Animais, entidade mais que centenária, fundada em 1895, responsável pela instituição do Movimento de Proteção Animal no país. Possui também formação em Psicologia, com especialização em Psicologia da Educação.