Seguem abaixo excertos do artigo “União Internacional Protetora dos Animais de São Paulo: práticas, discursos e representações de uma entidade nas primeiras décadas do século XX”, publicado na Revista Brasileira de História (Rev.Bras.Hist. vol.37, nº.75, SP, May/Aug. 2017, Epub Aug 17, 2017), de autoria da Professora Natascha Stefania Carvalho de Ostos, do Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em pesquisa financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq.
Extraíram-se do primoroso artigo apenas os trechos dos quais constam informações diretas e relevantes acerca da atuação da Uipa, cuja trajetória, centenária e desconhecida da maioria, merece ser registrada e divulgada. Traz o artigo dados sobre o surgimento do Decreto Federal nº 24.645/34 que, redigido pela Uipa, até os dias de hoje, constitui o mais extensivo e valoroso diploma legal editado em defesa dos animais.
RESUMO
O artigo examina a trajetória da União Internacional Protetora dos Animais de São Paulo nas primeiras décadas do século XX. Com base em jornais diários publicados no estado e na revista Zoophilo Paulista, editada pela entidade, analisamos suas ações e estratégias discursivas no intuito de sensibilizar a população e o poder público para a necessidade de proteger os animais. No meio urbano em expansão a convivência entre humanos e animais se apresentava como um desafio, exigindo mudanças e adaptações na forma de lidar com os bichos, o que envolvia aspectos sociais, políticos, econômicos e culturais. Nesses termos, pensar os animais foi um importante exercício de reflexão para se questionar a violência humana e os limites da exploração econômica e da ação do homem sobre a natureza.
A União Internacional Protetora dos Animais (UIPA) foi a primeira sociedade do tipo criada no Brasil, na cidade de São Paulo, no ano de 1895, e ainda em atividade nos dias de hoje.7 Fundada por figuras destacadas da elite paulista (políticos, juristas, escritores e professores), a associação teve como um dos seus iniciadores Ignácio Wallace da Gama Cochrane (1836-1912), engenheiro e deputado paulista engajado em vários projetos, como na organização, em 1903, do Instituto Pasteur de São Paulo, referência no combate à raiva e na pesquisa de vacinas e produtos veterinários (Teixeira; Sandoval; Takaoka, 2004).
Tendo nascido da iniciativa de pessoas abastadas, social e politicamente influentes, não tardou que a entidade ganhasse robustez patrimonial e trânsito entre as autoridades públicas e a imprensa. Com sede própria na Vila Mariana, hoje parque do Ibirapuera, e reunindo cerca de 2.500 sócios no ano de 1930, as ações do grupo se expandiram rapidamente, e já na década de 1920 contava com um cemitério para animais e, no ano de 1929, um hospital dedicado a socorrer os bichos da cidade, promovendo atendimento gratuito aos animais cujos donos não possuíam condição financeira para arcar com os custos dos tratamentos.8
A associação lançou em maio de 1919 a revista Zoophilo Paulista, editada mensalmente e distribuída principalmente no estado de São Paulo, tendo como editor chefe João Caiaffa, professor e tradutor.
A criação do impresso e sua edição por tantos anos atestam a saúde financeira da entidade, capaz de canalizar recursos para além da sua atividade fim e ainda assim manter uma ampla estrutura imobiliária e de prestação de serviços. A proposta de lançar um periódico inteiramente dedicado ao tema da proteção aos animais e à divulgação da causa era uma proposta editorial inédita no Brasil.
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As propagandas, o sistema de assinaturas e os próprios recursos da entidade garantiram a edição da revista por pelo menos 13 anos, feito digno de nota considerando tratar-se de entidade filantrópica e o fato de a revista cobrir um nicho editorial muito especializado, distribuída no estado de São Paulo.
Zoophilo Paulista trazia informações importantes sobre o projeto e as ações da UIPA. Seu intuito era educar os leitores e divulgar as ações do grupo, que incluíam: socorro aos animais abandonados e feridos nas ruas, verificação de denúncias de crueldade, propostas de implantação e melhoria de serviços públicos envolvendo os animais, oferecimento de abrigo e cuidados veterinários a animais necessitados etc. A revista dedicava-se prioritariamente ao universo adulto, mas também contava com algum conteúdo dirigido às crianças. O tom geral do periódico era de caráter informativo e noticioso, tratando de assuntos bastante específicos, como as condições do comércio dos animais, os procedimentos adotados nos abatedouros, iniciativas governamentais, artigos debatendo os direitos dos animais, fotos de bichos feridos ou maltratados etc. O impresso não tinha seções fixas, os temas se sucediam sem ordem aparente, tratando de curiosidades sobre o mundo animal, episódios de “heroísmo” de animais, debate sobre códigos de postura e legislação, fotografias e relatos de pessoas envolvidas na causa, imagens de animais com seus donos, tradução de textos estrangeiros sobre a temática, casos de crueldade, abandono e acidentes etc. Mesclavam-se na publicação narrativas exaltando a ternura na relação homem-animal – como poemas, relatos edificantes sobre a fidelidade dos animais, fotografias enviadas por leitores com seus bichinhos – com notícias e imagens brutais, expondo episódios de crueldade e de descaso.
A rubrica era ampla, mas predominava nitidamente o interesse pelo destino dos animais domésticos,10 em especial aqueles presentes no meio urbano. Nas primeiras décadas do século XX as principais cidades do país passaram por profundas transformações urbanísticas, de uso e ocupação do espaço. O grande afluxo de imigrantes, a crescente industrialização e a renda oriunda do café garantiram à capital paulista um crescimento impressionante na década de 1920 (Arias Neto, 2006, p.226-227). A demanda populacional e os recursos econômicos impulsionaram a expansão de serviços tais como iluminação pública, bondes elétricos, abertura de vias e número crescente de automóveis. A transição de um ambiente pacato para uma cidade movimentada não se deu sem descompassos, pois nesse contexto os animais ainda permaneciam como agentes importantes para o funcionamento da cidade e para o desempenho de trabalhos, puxando bondes e carroças, como meio de transporte, energia motriz e suportando pesos. Ao mesmo tempo as vias amplas e pavimentadas recebiam os trilhos de bondes e carros, cuja velocidade era muitas vezes incompatível com a destreza de animais sobrecarregados e assustados.
Zoophilo Paulista enfatizava continuamente as mortes de animais por atropelamento, denunciando a velocidade excessiva, a imprudência dos condutores e, após o sinistro, o abandono dos bichos na via pública sem qualquer socorro. Para causar maior impacto no leitor essas notícias eram ilustradas com fotografias das cenas dos acidentes, expondo cavalos, burros, bois e cães mortos ou feridos, focalizando sangue e até vísceras expostas. A brutalidade da máquina contrastava com a fragilidade e a impotência dos animais, submetidos, pela incúria humana, a todo tipo de situação perigosa. A UIPA contava com uma linha telefônica, que mantinha até mesmo um plantão noturno, por meio da qual os cidadãos poderiam acionar a entidade, que então enviava equipe de socorro, resultando quase sempre no sacrifício do bicho, dada a gravidade dos ferimentos;
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A UIPA se destacava pelas constantes tentativas de diálogo com o poder público em todas as esferas governamentais, instando as autoridades a criar leis e regulamentos a favor dos animais, pedindo ação policial e aplicação das normas existentes. Desde o fim do século XIX o grupo mantinha parceria oficial com a prefeitura de São Paulo, como auxiliar na execução de regulamentos oficiais destinados a recolher animais abandonados ( )
Até por volta de 1909 o município designava dotações financeiras para que a associação cuidasse do depósito de animais, mas o número de bichos que circulavam pela cidade excedia a capacidade de ação do grupo, resultando em insatisfações tanto do poder público como da população (Aprobato, 2007, p.143, p.147). Tal fenômeno não foi exclusivo da cidade de São Paulo, pois grandes centros urbanos, como Nova York, enfrentavam o mesmo problema e também recorreram ao auxílio das associações civis na tentativa de controlar o fluxo e a presença de animais. De acordo com Jessica Wang tal cenário desafia pressupostos estabelecidos sobre grupos protetores, evidenciando que ao longo da história eles não se restringiram a atuar como educadores e divulgadores da causa, tendo desempenhado papel público relevante ao assumirem poderes de fiscalização e de polícia, “exercendo autoridade estatal juntamente com agências governamentais formalmente constituídas, por vezes em um espírito de cooperação, outras vezes com intensa rivalidade” (Wang, 2012, p.999, trad. NO).
Assim é que, buscando diálogo e aproximação com o governo, a União Internacional Protetora dos Animais alcançou, no ano de 1934, uma grande vitória no que concerne à criação de uma legislação protetora dos animais no Brasil. Antes dessa data existiam normas expedidas por municípios proibindo práticas cruéis, mas a primeira lei de alcance nacional, de 1920, não era específica sobre o tema, versava sobre o funcionamento dos estabelecimentos de diversão, e em meio a outros artigos constava que “Não será concedida licença para corridas de touros, garraios e novilhos, nem briga de gallos e canarios ou quaesquer outras diversões desse genero que causem soffrimentos aos animaes”.15 Com a ascensão de Getúlio Vargas ao poder, deu-se uma onda legisladora que abrangia os mais diversos assuntos, e nesse quadro geral de mudanças e de desejo de modernizar o país (Schwarcz; Starling, 2015, p.361-362) a associação percebeu uma oportunidade. Em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, no dia 4 de maio de 1934, a UIPA dirigiu um memorial diretamente “Ao sr. Getúlio Vargas”, recordando ao mandatário que “quase todas as nações do globo possuem leis a respeito”, mas que no Brasil as normas “não são extensivas a todos os animais existentes no território nacional”. O texto continha um apanhado histórico da legislação de alguns países e informava que no caso do Brasil projetos de lei sobre o tema foram apresentados ao Congresso Nacional nos anos de 1912, 1914, 1922 e 1929, sem sucesso. O relato é valioso, pois mostra que a luta pela causa animal no país foi um processo contínuo de ação organizada com várias frentes de atuação, incluindo pressão junto aos legisladores, a ponto de a matéria chegar várias vezes ao Legislativo, o que demonstra a ressonância da questão animal em uma parcela da sociedade brasileira.
Em janeiro de 1934, o governo de Getúlio Vargas havia promulgado o Código de Caça e Pesca, regulando, entre vários assuntos, os períodos de defeso da caça e pesca, e proibindo métodos cruéis de captura de bichos.16 Contudo, tratava-se de um amparo restrito, voltado para atividade que ao cabo visava aprisionar e matar animais, e que em outros artigos cedia aos interesses dos praticantes da cinegética no país. Os sócios da UIPA intuíram o bom momento para apresentar sua petição, pois Vargas vinha mantendo a tendência de compor com grupos de interesses diversos. Ao atender minimamente as demandas de vários segmentos sociais o governo angariava o apoio e a boa vontade de membros destacados e influentes da sociedade brasileira (Miceli, 1979). O artigo escrito pela UIPA no jornal paulista era uma interpelação pública dirigida ao presidente, “a União Internacional Protetora dos Animais, de S. Paulo, pede vênia para submeter à apreciação de v. exa. o projeto de lei incluso, rogando a v. exa. se digne transformá-lo em lei”.17 O texto completo do projeto foi transcrito no jornal e assinado por Affonso Vidal, um dos editores da revista Zoophilo Paulista. Para surpresa da entidade seus apelos surtiram efeito, pois no dia 10 de julho de 1934, Getúlio sancionou decreto que estabelecia “medidas de proteção aos animais”.18 O fato foi alardeado pela UIPA como uma vitória da própria agremiação, já que a lei aprovada seguia integralmente o texto criado no seio da entidade, tendo esta recebido “comunicação telegráfica diretamente do Palácio do Catete, firmada pelo Sr. Luiz Simões Lopes, informando haver o chefe do governo provisório assinado, ontem, o decreto que orientará, em toda a República, a proteção aos animais, e de cujo anteprojeto é autor o sr. Affonso Vidal, um dos esforçados diretores da referida sociedade protetora”.19
A partir desse decreto todos os animais existentes no país passaram a ser tutelados pelo Estado e os maus tratos a eles dispensados tornaram-se passíveis de gerar multas e até mesmo prisão. ( )
Na elaboração da lei, a UIPA tratou de garantir o protagonismo das entidades protetoras na fiscalização e apuração das infrações, colocando-se como parceira oficial do poder público. O artigo 2º, no seu 3º parágrafo, estabelecia que “Os animais serão assistidos em juízo pelos representantes do Ministério Público, seus substitutos legais e pelos membros das Sociedades Protetoras de Animais”; e o artigo 16 determinava que “As autoridades federais, estaduais e municipais prestarão aos membros das sociedades protetoras de animais a cooperação necessária para fazer cumprir a presente Lei” (grifos nossos). Não é nosso objetivo fazer uma análise do decreto, o intuito é evidenciar a capacidade operativa e a influência da UIPA ao propor e aprovar projeto de sua autoria, transformando em lei federal uma série de determinações que potencialmente atingiam todos os animais existentes no país, regulando práticas e costumes antigos no trato dos bichos, bem como rotinas de exploração econômica.
O propósito da organização era o de influenciar o maior número de pessoas no que toca à causa animal, mas o direcionamento de suas iniciativas não era aleatório, pois estava claro para a entidade que certos grupos sociais possuíam maior poder simbólico, econômico e político, podendo transformar-se em aliados de peso e propagadores de ideias favoráveis aos bichos. Assim é que no ano de promulgação do decreto foram distribuídos “20.000 mil exemplares da ‘lei áurea dos animais’, enviando-os, indistintamente, a todas as autoridades estaduais e municipais, a centros religiosos e educativos, a juízes e, notadamente, aos jornais de todo o Brasil, grande parte dos quais transcreveram em suas colunas a lei”.20 A comparação com a lei áurea, que aboliu a escravidão no Brasil, remetia à condição de submissão dos animais do país, pressupondo a vigência de situações de crueldade, exploração, abuso e dominação injusta; mais do que isso, insinuava que circunstâncias de vida tidas como arbitrárias e iníquas para os seres humanos tampouco poderiam prevalecer para os animais. Em que pese o impacto da comparação, a lei não deixou de circunscrever, na própria definição de animal, quais bichos estariam sob o seu amparo, procurando mais regular a forma de usar o trabalho dos animais do que abolir a sua exploração. Certamente, o caráter conciliador da matéria legal em muito contribuiu para a sua aprovação, já que embora alguém dificilmente defendesse o direito de espancar um bicho, as pessoas resistiriam fortemente a limitar ou revogar o uso de animais como transporte, alimento e força de trabalho.
Encontramos algumas referências nos jornais diários sobre casos em que a lei foi aplicada, o que ajuda a traçar um quadro sobre os episódios mais comuns de violência contra os animais: espancar bichos que não obedeciam a comandos, torturá-los por diversão e, não raro, matá-los por vingança, em razão de disputas com desafetos. “Biagio Rivelino foi processado por haver desfechado um tiro de espingarda na cadela de propriedade de Kurt Rigert … a qual morreu”, porém o crime teria prescrito por “negligência de funcionário falho”.21 Em outro caso a justiça foi mais ágil, tendo o Tribunal de Apelação negado recurso contra sentença de primeira instância que condenou pai e filho pela morte de um cão. Segundo relato contido no acórdão “o pobre animal, tomado de pavor, debatia-se nas mãos do seu algoz, que o feria, espaçadamente, com uma faca, até conseguir exterminá-lo”, tendo anteriormente os acusados matado outro cachorro “a cacetadas no quintal de sua residência”. A pena foi “de 10 dias de prisão e a pagar multa de 200$000 por infração do Decreto Federal n. 24.645, de 10 de julho de 1934”. O juiz relator do caso afirmou que “só aplausos merece o novo decreto, pois segundo estudos e demonstrações científicas, é sabido que os animais são também dotados de sensibilidade e de instintos aprimorados”.22
Fica claro, portanto, que a UIPA obteve sucesso considerável em sua proposta de divulgar a causa animal e sensibilizar as autoridades para o problema, e o decreto de 1934 representou um grande triunfo para entidade que, após 39 anos de sua fundação, alcançou reconhecimento público e conquistou considerável terreno de ação. Assim é que nem mesmo a iniciativa privada escapava à vigilância da sociedade protetora, célere em enviar pedidos de explicação a empresas, exigindo mudança de atitude em caso de abuso contra os animais. A fábrica de produtos alimentícios Vigor se viu compelida a esclarecer seus procedimentos em carta: “nas ruas mal calçadas, embora certos carros-tanque nossos pudessem ser puxados por dois animais, o serviço é feito por três”.23 Cidadãos comuns também eram alvo de denúncias levadas à polícia “ao sr. Nenem Calabrez, por espancar barbaramente um garrote; e ao sr. Alfredo Moreira, por ter entregado no matadouro uma novilha bastante ferida, com as orelhas decepadas”.24
Já a relação com o governo, em suas diferentes instâncias, nem sempre foi de concordância. Nas páginas de Zoophilo Paulista fica claro o desejo da entidade em interferir e alterar práticas e costumes considerados cruéis e atrasados, e o impresso interpelava constantemente secretários de agricultura, prefeitos, governadores, deputados, vereadores etc. Atenta a tudo que pudesse impactar o bem-estar dos animais, a organização denunciou projeto de lei de vereador da cidade de Campinas, que propunha “a extinção de cães vagabundos por meio de bolas de estricnina”. A ideia foi prontamente combatida na primeira página da revista, e sobre a proposta o editorial indagava: “Produto de inconsciência, covardia ou perversidade?”. O fato é que em muitos casos a pressão da entidade, com o apoio da imprensa, obtinha resultado, tendo o “projeto monstrengo” sido modificado pela Câmara da cidade.25 De modo geral as admoestações dirigidas às autoridades costumavam ser polidas, a organização evitava embates com o poder instituído em razão dos benefícios concedidos pelo governo à UIPA: “Fica o Prefeito autorizado a ceder gratuitamente, o uso e o gozo de um terreno Municipal … à Sociedade União Internacional Protetora dos Animais, para instalação e funcionamento de um hospital zoophilo”.26 A associação também usufruía de auxílio federal para desempenhar suas atividades, tanto que com a mudança de governo desencadeada pelo movimento de 1930, a organização enviou ofício ao “Dr. Oswaldo Aranha, Ministro da Justiça … para fazer jus à continuação da subvenção com que temos sido contemplados há vários anos”.27
Ao longo do tempo a entidade manteve comunicação ativa com as autoridades, buscando capacitar o poder público para lidar com os animas de maneira adequada e digna, apontando a insuficiência da legislação, a falta de fiscalização, o tratamento cruel que os próprios servidores dispensavam aos animais utilizados pelo Estado e a carência de incentivos governamentais dirigidos à associação, que se dizia sobrecarregada por encargos financeiros em nome de um trabalho que, em última instância, beneficiava toda a sociedade.
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O que a trajetória da UIPA demonstra é que a luta pela defesa dos animais no Brasil é mais longa do que imagina o senso comum, e que a causa apresentava contornos fortes e estruturados já nas primeiras décadas do século XX, de tal forma que as associações protetoras foram consideradas interlocutoras e auxiliares legítimas do poder público, a ponto de receberem atribuições oficiais e de influenciarem a promulgação de leis no país. Sua atuação preferencial nos centros urbanos se explica pela imensidão territorial do Brasil, pelos recursos limitados da entidade, tanto econômicos como de pessoal, e pelo fortalecimento de uma nova sensibilidade por parte dos citadinos, alijados em parte das práticas rurais, e cada vez menos tolerantes com cenas de morte, do sangue, do abate ao alcance dos sentidos, dos dejetos orgânicos, das infestações trazidas pelos bichos, da visão de seres feridos ou mutilados (Hodak, 1999, p.163). No processo de defender os animais e de conscientizar a população sobre a sua importância – mesmo que os argumentos utilizados fossem em grande parte antropocêntricos -, a União Internacional Protetora dos Animais questionou a pretensão humana de ser a única espécie com direito à vida e ao gozo de uma existência digna e pacífica.
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1Professora substituta do Departamento de História da UFMG, pós-doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. Pesquisa financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq (processo: 165936/2015-0). Pesquisa sob a supervisão da Profª Drª Regina Horta Duarte, do Departamento de História da UFMG. Todos os exemplares da revista Zoophilo Paulista citados neste artigo pertencem ao acervo particular da Profª Regina Horta Duarte, a quem agradecemos por ceder, tão generosamente, a documentação para consulta. Este artigo constitui uma etapa de pesquisa desenvolvida pelo grupo História e Natureza, liderado pela referida professora, que em próxima fase expandirá a investigação com base em acervo documental inédito.
2O clipe oficial da música está disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=QcZNV0HVo9Y; Acesso em: 18 mar. 2017. O filme é categorizado como “vídeo documentário”, nele o cantor aparece visitando uma instituição protetora de animais. À medida que a música se desenvolve surgem imagens de cães interagindo com o artista, que promove campanha pela adoção e o cuidado com os bichos. Até o momento, e apenas nessa plataforma, o clipe teve mais de 31 milhões de visualizações.
3A pesquisa do IBGE está disponível em: http://saladeimprensa.ibge.gov.br/pt/noticias?view=noticia&id=1&idnoticia=2902&busca=1&t=pns-2013-tres-cada-quatro-brasileiros-costumam-buscar-atendimento-medico-rede-publica; Acesso em: 4 jul. 2015. Para a repercussão na imprensa ver: http://f5.folha.uol.com.br/bichos/2015/06/1636937-brasileiros-tem-mais-cachorros-que-criancas-segundo-pesquisa-do-ibge.shtml; Acesso em: 4 jul. 2015.
4Disponível em: http://abinpet.org.br/site/setor-pet-chega-a-r-18-bilhoes-em-2015-mas-nao-sem-os-efeitos-da-crise/; Acesso em: 20 fev. 2017. O setor é dividido nas áreas de alimentação, serviços, itens de cuidados e medicamentos.
5Uma listagem bibliográfica em inglês sobre os estudos dos animais está disponível em: http://www.animalstudies.msu.edu/bibliography.php. No caso da França consultar BARATAY; MAYAUD, 1997.
6Vem crescendo o número de trabalhos dedicados a estudar o que em inglês se denomina de animal agency, isto é, os animais como seres capazes de “influenciar e guiar as suas próprias vidas”. Obviamente, o tema não deixa de ser mediado pelo olhar humano, mas traz informações relevantes sobre as ações dos bichos frente à dominação humana, como: desobedecer a comandos, vocalizar descontentamento, danificar objetos, fugir, recusa em se locomover e em realizar tarefas, agressões físicas, “roubo” de alimentos etc. (HRIBAL, 2007, p.102-103).
7As primeiras iniciativas visando a proteção aos animais (objetivando o bem-estar animal e não interesses diretos dos homens), surgiram na Inglaterra do século XIX. Leis esparsas tentavam prevenir a crueldade contra o gado (1822) e proibir lutas entre cães (AMARO; FELGUEIRAS; LENCASTRE, 2013, p.13). No ano de 1824 foi fundada em Londres a Royal Society for the Prevention of Cruelty to Animals, inspirando daí em diante a composição de grupos semelhantes pelo mundo (MÓL; VENANCIO, 2014, p.19).
8A. C. Editoriais. Carta Paulista. A Sociedade Protectora dos Animaes. A República, Curitiba, ano LXV, n.73, 5 abr. 1930, p.3.
9Casa Orestes (anúncio). Zoophilo Paulista, São Paulo, ano XII, n.126, dez. 1930, s.n.p.
10A caracterização de animais como domésticos ou selvagens não diz respeito à espécie, e sim à sua situação de vida. Domésticos (incluindo os chamados animais de companhia) são aqueles mantidos em “cativeiro por uma comunidade humana que possui total controle sobre sua criação, organização territorial e suprimento alimentar”. Os animais selvagens não dependem de fontes de comida produzida por humanos e ocupam territórios próprios. De acordo com tal caracterização uma onça é quase sempre um bicho selvagem, mas se em cativeiro, em um zoológico por exemplo, passaria a ser doméstico. CLUTTON-BROCK, 2012, p.3 apud Animal Studiest at Michigan State University, disponível em: http://animalstudies.msu.edu/; Acesso em: 7 mar. 2017.
11Horrível Desastre. Zoophilo Paulista, São Paulo, ano XII, n.121, jun. 1930, s.n.p.
12Constitui-se nesta capital uma nova sociedade destinada à proteção dos animais. Diário Nacional, São Paulo, n.1483, 9 jun. 1932, p.5.
13Palavras de um oposicionista da Protetora dos Animais. A Gazeta, São Paulo, n. 7.829, 10 mar. 1932, p.4.
14Não maltrate os animais… Protetora hipotética – O que não se faz e o que se deveria fazer. A Gazeta, São Paulo, n.8.213, 29 maio 1933, p.8.
15BRASIL. Decreto n.14.529, 9 dez. 1920. Dá novo regulamento ás casas de diversões e espetáculos públicos. Disponível em:
http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1920-1929/decreto-14529-9-dezembro-1920-503076-republicacao-93791-pe.html; Acesso em: 5 abr. 2016.
16Decreto-lei n.23.672, 2 jan. 1934. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1930-1939/decreto-23672-2-janeiro-1934-498613-publicacaooriginal-1-pe.html; Acesso em: 14 mar. 2016.
17Proteção aos Animais. Um memorial da União Internacional Protetora dos Animais ao chefe do governo provisório. O Estado de S. Paulo, São Paulo, ano LX, n.19.794, 4 maio 1934, p.5.
18Decreto n.24.645, 10 jul. 1934. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1930-1949/D24645.htm; Acesso em: 13 maio 2015.
19União Internacional Protetora dos Animais. Correio Paulistano, São Paulo, ano LXXXI, n.24.017, 13 jul. 1934, p.7.
20A proteção aos animais no Brasil. Correio Paulistano, São Paulo, ano LXXXIV, n.25.206, 13 maio 1938, p.12.
21Forum criminal. Correio Paulistano, São Paulo, ano LXXXV, n.25.493, 18 abr. 1939, p.17.
22Diário Oficial de São Paulo, São Paulo, “Botucatú”, 15 jan. 1942, p.32.
23A proteção dos animais nesta capital. Zoophilo Paulista, São Paulo, ano XII, n.121, jun. 1930, s.n.p.
24A proteção dos animais em Bauru. Zoophilo Paulista, São Paulo, ano XII, n.123, ago. 1930, s./p.
25Um gesto desastrado. Zoophilo Paulista, São Paulo, ano XII, n.125, out. 1930, s.n.p.
26Resolução n.128. Prefeitura Municipal de São Paulo, 2 out. 1928. Zoophilo Paulista, São Paulo, ano XII, n.121, jun. 1930, s.n.p.
27Em prol da União Internacional Protetora dos Animais. Zoophilo Paulista, São Paulo, ano XII, n.127, fev. 1931, s.n.p.
28Trovas caipiras. A vida e as tristezas e injustiças que sofreu um boi desde que nasceu. Zoophilo Paulista, São Paulo, ano XIII, n.130, maio 1931, s.n.p.
29G. CIALURRI. A Lucta Anti-Viviseccionista. Zoophilo Paulista, São Paulo, ano XII, n.122, jul. 1930, s.n.p.; grifo nosso.
30Desumanidade. Zoophilo Paulista, São Paulo, ano XII, n.123, ago. 1930, s.n.p.; grifos nossos.
Recebido: 03 de Abril de 2017; Aceito: 06 de Junho de 2017
(http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-01882017005004104&script=sci_abstract&tlng=pt)