Em meados dos anos 1990, a Uipa, União Internacional Protetora dos Animais, associação civil que, no século XIX, instituiu o Movimento de Proteção Animal no país, encaminhou numerosas representações ao Ministério Público de São Paulo, visando proibir, nas montarias em rodeios, instrumentos de tortura como o sedém e as esporas, além da realização de outras provas cruéis que nesses eventos ocorrem, como as que envolvem laçadas e derrubadas.
E essa pretensão amparava-se em dezenas de laudos e pareceres técnicos que a entidade obteve para instruir ações civis públicas propostas contra a prática.
Temendo o fim dos rodeios, seus adeptos socorreram-se de parlamentares para a edição de leis permissivas da prática, fazendo surgir a Lei Estadual Paulista nº 10.359/99 e a Lei Federal nº 10.519/2002, ambas inconstitucionais, por violarem preceito que veda a crueldade com animais, inserto no artigo 225,§1º, inciso VII, da Constituição da República. E o peão de rodeio ainda foi alçado à categoria de atleta profissional pela Lei Federal nº 10.220/2001!
Cerca de metade das ações civis públicas ajuizadas foram julgadas procedentes pelo Tribunal de Justiça, tendo a entidade interposto Recurso Extraordinário contra as decisões prolatadas em desfavor dos animais, que davam aplicação às leis permissivas de rodeios, a despeito de sua natureza inconstitucional.
Mas o seguimento desses recursos foi, sistematicamente, negado sob a alegação de que a discussão do pedido formulado envolveria o debate da legislação de índole infraconstitucional que rege a matéria, o que não seria possível por via de recurso extraordinário, consoante iterativa jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que exige, como um dos requisitos de admissibilidade, a existência de violação direta e frontal ao texto constitucional.
Segundo o referido assentamento jurisprudencial, violações que não atinjam, de forma direta, o texto constitucional, dependendo a sua verificação da análise de legislação infraconstitucional, não possibilitam o conhecimento do recurso extraordinário, à medida que se trataria de uma violação indireta ou reflexa.
Impraticável, diante desse quadro, questionar a constitucionalidade de decisões judiciais exaradas com base em leis permissivas de provas que impõem sofrimento aos animais, pelo só fato de tal inconstitucionalidade estar sendo classificada como indireta ou reflexiva, o que não autorizaria o manejo de um recurso extraordinário.
Mediante a impossibilidade de conhecimento de recursos extraordinários que viessem a ser interpostos, a entidade viu-se obrigada a frear a proposição de novas ações civis públicas, uma vez que a aplicação e eficácia da norma constitucional protetiva da fauna, e a sua supremacia sobre lei infraconstitucional que a viole, já não estariam sendo garantidas pela Suprema Corte, guardiã da Constituição da República.
Grave ainda o fato de que a propositura de uma ação direta de inconstitucionalidade – ADI – também não se mostra cabível, pois conforme entendimento estabelecido pela Suprema Corte, a incompatibilidade entre a lei e a Constituição também há de ser direta e frontal, inadmitida violação oblíqua ou reflexa.
Muito embora trate-se de assentamento jurisprudencial já firmado, é forçoso reconhecer que esse requisito de admissibilidade não encontra amparo na norma constitucional que determina ao Supremo Tribunal Federal que guarde a Constituição, julgando, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, “quando a decisão recorrida contrariar dispositivo constitucional”, como se depreende da leitura do artigo 102, inciso III, alínea “a”.
Segundo a norma acima transcrita, basta que a decisão recorrida contrarie dispositivo constitucional, inexistindo qualquer imposição relativa ao caráter direto e frontal dessa contrariedade.
Mesmo a Lei que regula o ajuizamento da ADI também não faz menção à necessidade de ser tal ação proposta apenas no caso de ofensa direta e frontal à Constituição da República.
Ao firmar o posicionamento de que a violação indireta e reflexa ao texto constitucional não autoriza o conhecimento do recurso extraordinário, ceifou-se dos jurisdicionados o instrumento para debelar ofensas às normas constitucionais, restringindo-se a própria eficácia dessas normas que, livremente, podem ser atacadas por leis infraconstitucionais e por decisões de segunda instância, sem que se tenha a quem recorrer.
Exercer a tutela jurídica da fauna, que tem na norma constitucional protetiva o seu maior expoente, tornou-se inviável, à medida que inexistem ferramentas processuais que possibilitem reclamar a sua prevalência sobre leis infraconstitucionais e decisões do Judiciário que a transgridam.
Já não se dispõe de meios para impugnar decisões judiciais que ofendem a norma constitucional protetiva dos animais, nem para arguir a inconstitucionalidade de leis editadas para explorá-los.
Estaremos sob o império de leis inconstitucionais, e a norma protetiva seguirá como letra morta, se esse entendimento jurisprudencial continuar a ser aplicado.
Se o direito de ação é uma prerrogativa, e o recurso é o prolongamento do direito de ação, óbices não poderiam ser colocados à efetiva tutela jurisdicional, sob pena de ferir-se um direito e uma garantia, ambos de natureza constitucional.
Em uma de suas decisões, o Ministro Marco Aurélio Mello lembra que esse posicionamento não se mostra compatível com a missão do Supremo Tribunal Federal:
“RECURSO EXTRAORDINÁRIO – DEVIDO PROCESSO LEGAL – VIABILIDADE. Caso a caso, o Supremo Tribunal Federal deve perquirir até que ponto o que decidido pela Corte de origem revela inobservância ao devido processo legal. Enfoque que se impõe no que o inciso LV do artigo 5º da Constituição Federal remete, necessariamente, a normas estritamente legais. Cabimento do extraordinário em hipóteses em que, mesmo diante de embargos declaratórios, o órgão de cúpula do Judiciário Trabalhista deixou de examinar matéria de defesa. Não se coaduna com a missão precípua do Supremo Tribunal Federal, de guardião maior da Carta Política da República, alçar a dogma a assertiva segundo a qual a violência à Lei Básica, suficiente a impulsionar o extraordinário, há de ser frontal e direta. Dois princípios dos mais caros nas sociedades democráticas, e por isso mesmo contemplados pela Carta de 1988, afastam esse enfoque, no que remetem, sempre, ao exame do caso concreto, considerada a legislação ordinária – os princípios da legalidade e do devido processo legal. EMBARGOS DECLARATÓRIOS – OMISSÃO. Uma vez constatado o silêncio sobre matéria de defesa, impõe-se o acolhimento dos declaratórios. Persistindo o órgão julgador no vício de procedimento, tem-se a transgressão ao devido processo legal no que encerra garantia assegurada, de forma abrangente, pela Carta da República , artigo 5º, inciso LV.” STF – Ministro Relator Marco Aurélio Mello – RE 398407/RJ – 1ª Turma – Julgamento de 21.09.04.
Como lembra Leonardo Greco, “no Estado Democrático Contemporâneo, a eficácia concreta dos direitos constitucionais e legalmente assegurados depende da garantia da tutela jurisdicional efetiva, porque sem ela o titular do direito não dispõe da proteção necessária do Estado ao seu pleno gozo. A tutela jurisdicional efetiva é, portanto, não apenas uma garantia, mas ela própria, também um direito fundamental.” (“Garantias Fundamentais do Processo”: o processo justo in Juris Polesis”, Revista da Universidade Estácio de Sá, nº6, ano 07, Rio de Janeiro, 2004, páginas 3 e 4).
No caso em comento, estamos diante de uma inconteste afronta à norma constitucional. Isso porque os corcoveios dos animais utilizados em rodeios resultam da dor e do tormento de que padecem, não só pelo uso de esporas, mas também pelo sedém, artefato amarrado e retesado ao redor de seus corpos, na região da virilha, tracionado ao máximo no momento em que são soltos na arena. Ainda que confeccionado em material macio, o sedém produz estímulos dolorosos derivados da violenta compressão exercida sobre a sensível região da virilha.
Com força e brutalidade, animais são golpeados por esporas, que lhes causam sofrimento, ainda que não pontiagudas.
Laçadas e derrubadas submetem animais ao risco de rompimento de órgãos internos, lesões nos membros, nas costelas e na coluna vertebral.
Pelo sofrimento que produzem, tais práticas constituem crueldade, a despeito da lei que as permitem. A norma jurídica não tem a propriedade de alterar a natureza dos fatos ou de legitimar atividade de natureza cruel.
Falsa também a alegação de que os rodeios integram o patrimônio cultural brasileiro. Laçar bezerros e atirar-se sobre a cabeça de um garrote, em pleno galope, para derrubá-lo ao chão, são atividades que jamais integraram a rotina das fazendas. E a indumentária utilizada por peões, travestidos de cowboys americanos, já denuncia o plágio da cultura estrangeira, confirmado, ainda pela origem inglesa das denominações dadas às modalidades apresentadas no rodeio como Bareback, Bull Riding, Team Penning, Calf Roping, Team Roping, Buldogging e Saddle Bronc.
Sabe-se que a festejada decisão que julgou inconstitucional lei cearense permissiva da vaquejada na ADI 4983, tendo em vista os requisitos, atualmente, exigidos para a procedência de uma ADI, foi uma exceção. Gloriosa exceção! Célebre exceção pela qual a Uipa rende suas homenagens àquela Corte!
Se os recursos extraordinários interpostos pela Uipa contra os rodeios tivessem sido conhecidos, a constitucionalidade dos rodeios já teria sido analisada por esta Corte. Teria havido, ao menos, a chance de se colocar um fim à exploração econômica do sofrimento desses animais. Já poderia estar o Movimento de Proteção Animal bem mais fortalecido contra a cultura da violência que vitima, especialmente, os bovinos e equinos desse país.
Compreende-se que a busca por meios de reduzir o aporte de recursos a serem julgados possui natureza meritória, que segue na direção de uma prestação jurisdicional aprimorada com o quilate que melhor se ajusta à Suprema Corte.
Mas cabe a esse Tribunal, por ser supremo, conferir às normas constitucionais a máxima eficácia, sem abdicar de examinar as ofensas que lhe são dirigidas, ainda que de forma indireta ou reflexa.
Como guardiã da Carta Magna, àquela Corte compete garantir ao povo um Poder Judiciário que não frustre seus ideais de justiça e, que ao zelar pelo princípio da inafastabilidade da tutela jurisdicional, jamais decline de enfrentar o que desonra a Constituição da República e os mais comezinhos postulados do Estado Democrático de Direito.
Vanice Teixeira Orlandi é advogada, presidente da Uipa, União Internacional Protetora dos Animais, entidade centenária, fundada em 1895, responsável pela instituição do Movimento de Proteção Animal no país. Possui também formação em Psicologia, com especialização em Psicologia da Educação.
Como sempre, texto e razões indiscutíveis….. Parabéns, Dra. Vanice.