Neste mês completou dois anos dos primeiros protestos de ativistas brasileiros em defesa dos animais embarcados em navios que atravessaram (e milhares seguem atravessando) o oceano Atlântico rumo à execução impiedosa em países estrangeiros, ocasião em que também foram filmados bovinos dentro de caminhões que seguiriam ao primeiro navio atracado no porto de Santos, cidade do litoral paulista.
Após centenas de quilômetros de viagem sendo chacoalhados nas estradas, de um estado para outro, de cidade em cidade, em meio a quedas, fraturas e excrementos, aturdidos com terrível sofrimento e pavor que podemos conferir quando simplesmente olhamos nos olhos daqueles poucos animais (e assim reconhecemos, ainda que por uma fração de segundo, nossa animalidade em comum, a nossa vulnerabilidade enquanto animais sencientes e conscientes), podemos também ter uma ínfima compreensão da crueldade imposta a esses animais ao longo de uma vida que será brutalmente abreviada.
Os sobreviventes de mais essa etapa de agonia – o transporte rodoviário – são colocados em alto mar muitas vezes já feridos e numa embarcação superlotada em tormentosa viagem de longuíssima distância e em meio à acontecimentos e circunstâncias que superam o filme de terror mais tenebroso.
O fato da maior parte da sociedade se alimentar de carne animal não serve de argumento válido para a manutenção da exportação de animais vivos para abate e consumo no exterior, seja por motivo religioso ou não religioso, porquanto certamente a maioria dessas pessoas também não concorda com a prática de atos bárbaros, cruéis, abusivos e de maus-tratos aos animais (apesar de serem práticas inerentes à criação para o assassinato), muito embora tais pessoas ainda não desenvolveram a consciência completa das tramas dessas questões.
A exportação de animais vivos no Brasil parece não ter dia para acabar, o que se agrava ora pela inércia das autoridades que tem competência para impedi-la, ora por iniciativas temerárias de algumas organizações não governamentais pedindo a regulamentação dessa cruel e nefasta atividade mercantil à pretexto de que buscam a libertação dos animais desse atroz sofrimento.
Em 25 de novembro passado, a imprensa brasileira noticiou o naufrágio na costa da Romênia de mais um desses navios macabros com 14 mil ovelhas a bordo que seguia à caminho da Arábia Saudita para o mesmo destino, a morte hedionda e covarde.
O comércio internacional dessas vidas também acontece em outros países e ativistas denunciam a atividade em vários cantos do mundo depois que o relatório de Lynn Simpson, veterinária australiana que esteve presente em muitas dessas viagens, veio a público.
No Brasil, há pelo menos quatro anos essa atividade emergiu com o naufrágio de uma embarcação com 4.900 bovinos vivos (e 700 toneladas de óleo diesel) no estado do Pará, ensejando ação do Ministério Público local contra as empresas responsáveis apenas para indenizar pessoas e comunidades dos municípios atingidos, e não para coibir novas exportações de animais de modo a impedir novos danos ambientais e proteger os animais contra maus-tratos e crueldade.
“A ação lembra que não é a primeira vez que a Minerva S.A., dona da carga do Haidar, foi responsável por crueldade contra animais. Em março de 2012, 2.700 bois morreram asfixiados por falta de ventilação dentro do navio Gracia Del Mar. Assim como o Haidar, o Gracia Del Mar também foi adaptado para transportar bois vivos”.
Em 2018, após reclamações da população, a empresa Minerva Foods também foi multada em aproximadamente 3 milhões pela Prefeitura de Santos, em São Paulo, devidos aos maus-tratos contra 27 mil bois no Porto de Santos e pela poluição atmosférica que empesteou a cidade, sendo o valor absolutamente irrisório considerando-se o poderio dessa multinacional, se é que foi pago, que não serve para reparar e inibir a conduta criminosa, além de não colocar à salvo os animais e o meio ambiente enquanto a atividade continuar.
Qualquer atividade econômica tem por finalidade assegurar a todos uma existência digna conforme os princípios da justiça social e observada a defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental. A proibição de uma atividade manifestamente cruel e danosa tem respaldo na Constituição da República.
A exportação de animais vivos viola frontalmente o direito animal fundamental de não serem submetidos à crueldade preconizado na nossa Constituição da República e ultrapassa a mera defesa ambiental, viola a lei federal de crimes ambientais e o decreto-lei que estabelece medidas de proteção aos animais desde 1934 e tão logo essa pavorosa atividade fora retomada no município portuário de Santos em 2017, fora denunciada para o Ministério Público Federal de São Paulo para adoção das providências cabíveis.
É função institucional do Ministério Público a promoção do inquérito civil e da ação civil pública para a proteção do meio ambiente e dos animais, inclusive a promoção da ação penal pública, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica.
O Ministério Público Federal foi provocado mediante representação encabeçada pelo então parlamentar e Presidente da Comissão de Meio Ambiente da Assembleia Legislativa Deputado Estadual Roberto Tripoli (PV-SP) e demais signatários, em conjunto com a entidade precursora da proteção e defesa animal no país União Internacional Protetora dos Animais – UIPA sediada na capital paulista, a fim de guarnecer a Procuradoria de Justiça com elementos o bastante para dar-se início à persecução investigativa com vistas à coibição dessa prática abominável e delituosa contra os animais.
Por força de lei, compete ao Ministério Público efetuar diligências e colher informações relevantes que propiciem embasamento suficiente para formar o convencimento do(a) Juiz(a) de Direito em tais ações (a exemplo do naufrágio da embarcação com bovinos vivos ocorrido no Estado do Pará) especialmente em ações judiciais delicadas como o caso que envolve os direitos dos animais ainda vistos como mercadorias ou commodities e os interesses de um poderosíssimo setor econômico que conta com a proteção do Estado.
“Os Procuradores da República têm necessidade de constituir um conjunto probatório que demonstre, de forma inequívoca, a crueldade da prática, o que se faz por meio do inquérito durante o qual poderão ser apurados os fatos denunciados. Assim, a autoridade requer a agentes públicos, que gozam de fé pública, que se manifestem por meio de pareceres, laudos técnicos e relatórios acerca do impacto que essa atividade representa para os animais”. – Vanice Teixeira Orlandi – Presidente da UIPA.
A representação foi acolhida pela Procuradoria Geral de Justiça e virou inquérito. O Ministério Público Federal opinou pela proibição da exportação, mas para o infortúnio dos animais vitimados, a representação não deu origem a uma potente ação civil pública de titularidade do MPF (que poderia ser auxiliado por autoridades e representantes de peso) isto é, não teve o andamento esperado, vez que algumas organizações de proteção animal se precipitaram com a entrada de ações judiciais, atropelando umas às outras de modo simultâneo e questionável, em aparente amadorismo. Além disso, só é possível uma ação tramitando no Poder Judiciário (em um mesmo grau de jurisdição) de modo que não haja decisões conflitantes.
Poucas e poucos ativistas, associações e coletivos que levam adiante a causa dos animais com comprometimento e seriedade, certamente gostariam de ver, o quanto antes, a proibição da exportação de animais vivos no território brasileiro e por isso mesmo devem ser realistas o bastante, compreendendo que a precipitação, sob hipótese alguma, pode ser maior do que a urgência das únicas e verdadeiras vítimas: os animais sensíveis maltratados e despachados para países estrangeiros, onde muitos não chegam ao destino por sucumbirem à brutalidade sofrida e os que chegam vivos estão em condições inimagináveis de dor. Em uma difícil causa, prudência e profissionalismo são fundamentais, já que as falhas humanas custam muito alto para esses inocentes.
Em 2018 houve, ainda, propostas legislativas nos estados de São Paulo (projeto de lei nº 31/2018) e do Rio de Janeiro (projeto de lei nº 3921/2018) visando proibir o embarque de animais vivos no transporte marítimo e/ou fluvial e também a apresentação de um projeto de lei no Senado Federal que altera a lei sobre a política agrícola para proibir a exportação de animais vivos destinados ao abate (projeto de lei federal nº 357/2018). No entanto, a força do agronegócio é muito forte e também muito presente nos Poderes Legislativo e Executivo, o que dificulta o andamento dessas propostas, sobretudo na era bolsonarista em que nos meteram.
Enquanto isso, dados do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento informam que esse negócio regado à crueldade e ilegalidades só tem crescido.
“Os dados dos últimos sete anos (2010-2017), mostram que a atividade gerou US$ 3,7 bilhões em divisas para o país. No ano passado, a exportação de bovinos vivos respondeu por faturamento de mais de US$ 276 milhões, e, dados até julho deste ano, mostram que os embarques atingiram US$ 301 milhões.” (Mapa)
Novas regras para a exportação de animais vivos foram rapidamente providenciadas pelo governo federal e desde 2018 também houve a abertura de novos mercados: Irã, Malásia e Cazaquistão. “Os próximos países que poderão comprar bovinos do Brasil são a Tailândia e a Indonésia”.
Em meio às omissões do Estado na real proteção dos animais e dos ecossistemas e em meio às condutas lamentáveis de muitos que se dizem defensores de animais ou dos Direitos Animais, os inocentes seguem exportados ora completamente ignorados, ora desamparados em disputas intermináveis, sendo embarcados em navios para a continuidade de abusos e violências em território estrangeiro rumo ao último ato bárbaro de uma implacável condenação que se arrasta desde o início de suas existências e que culminará no fim prematuro de suas desgraçadas vidas.
Queremos o cumprimento da norma constitucional de não submissão dos animais à crueldade. Se somos pela não crueldade, não consumimos carne animal e também pedimos urgentemente pelo fim dessa matança e incontestável atrocidade que é a exportação de animais vivos.